Fotografia a preto e branco (250x200cm), luz intensa, penumbra, ermida, porta intermitentemente fechada (ou aberta), observadores Olhando para uma mesma fotografia em diferentes contextos – livros, catálogos, exposições –, às vezes em diferentes formatos, surpreendo-me sempre com as suas extremas transformações. Parece diferente; e é diferente. É radicalmente alterada pelo local, tamanho, vizinhança – grande vulnerabilidade da imagem fotográfica, e que pode ser simultaneamente a sua grande força (e talvez por isso alguém já tenha afirmado que a história da fotografia deve ser considerada inseparável da história dos seus suportes). Nesta sempre provisória série de fotografias, todas a preto e branco, encontramos algumas quase negras, com o céu muito nublado e o mar a reflectir luz apenas numa estreita faixa da sua superfície – e não sabemos muito bem se a fotografia foi tirada ao anoitecer, ou durante uma tempestade. Alberto Plácido escolheu, não por acaso (já veremos porquê), uma destas escuras imagens para o seu projecto em Monsaraz. Na ermida de Santa Catarina, isolada e ainda longe da povoação, hoje praticamente sem ornamentos ou decoração interior mas com uma estrutura e uma métrica absolutamente singulares, colocou-se a ampliação de uma fotografia quase negra. Encerrou-se a porta de entrada, uma das maiores entradas de luz, que deve agora ser aberta e fechada por cada visitante. Apenas. E estas escolhas, mínimas, não deixam de desviar este primeiro gesto, aparentemente banal (colocar uma fotografia numa sala), da mera exposição de uma imagem. Alberto coloca em marcha uma máquina que vive da relação entre o espaço e a percepção do espectador; no fundo, mostra exemplarmente como uma fotografia, antes de ser uma imagem, é um dispositivo que envolve sempre o observador (o mesmo é dizer que objecto fotográfico e a sua recepção são inseparáveis). Neste caso, reconstitui-se a história da obra, ao mesmo tempo que se revelam as condições de aparecimento de qualquer fotografia. Como? No Alentejo, e em pleno Verão, deve-se contar com uma luz suficientemente forte para cegar o espectador que entra na ermida. Pouco a pouco, à medida que os olhos se adaptam à alteração lumínica, vão surgindo formas, que se tornam cada vez mais nítidas. Aparecem os contornos da construção, exactos, e a fotografia lá ao fundo, no espaço que bem podia acolher um altar, deixa gradualmente de parecer um écran apagado – como se sofresse um segundo processo de revelação. Neste sentido, a escura imagem de céu e mar – neste local específico –, também é uma espécie de auto-definição da fotografia, ou de realização da fotografia em si mesma. Para mais quando a luminosidade surge como elemento central da imagem: captam-se céu e mar, mas principalmente fotografa-se a luz, sem a qual não existe fotografia. Sem a qual não existe a imagem apresentada na ermida, permanentemente a ser produzida a cada abertura da porta, e por cada visitante que entra. Existe aqui uma tremenda capacidade para dirigir a tenção do espectador para o que alguma vez prendeu a atenção do fotógrafo, ou melhor, para o que conduziu à existência da imagem. Para a luz, para o tempo de exposição – para o que esta fotografia diz sobre a fotografia; e para o carácter mágico da revelação. E isto incluindo-nos activamente, e ao espaço de exposição; tanto que na ficha técnica desta obra de Alberto Plácido deveriam constar os seguintes elementos: fotografia a preto e branco, luz intensa, penumbra, ermida, porta intermitentemente fechada (ou aberta), observadores. Ricardo Nicolau, Julho de 2004 |
||